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Contínua e candente: a revolução que não cessa

Flora Daemon *

 

Alguém poderia dizer, se não nos conhecesse de perto, que somos tristes. Que é impossível para seres como nós, com nossos corpos, viver num país como esse, em que as estatísticas tentam nos encerrar nos armários da culpa e do medo. Que esses sentimentos – estrangeiros e artificiais − fazem parte da existência de quem nasce assim, com essa tez, esses órgãos, esses formatos e essa voz.

Talvez dissessem que somos ingênuas. Que o esforço empreendido para conquistar garantias mínimas é desproporcional; e que a cada passo que damos, sentindo o peso das âncoras que querem atar a nossos pés, não vale os rios de suor expelidos por nossas peles marcadas por rugas, cortes e tintas.

Alguns desavisados poderiam acreditar que há um momento em que finalmente cansamos, que sucumbimos ao medo por acreditar sermos aquilo que dizem que somos. Que o recolhimento, que às vezes buscamos, é retrocesso, que o luto inviabiliza a luta, que a pausa é sinônimo de pavor e que o silêncio é ausência.

Não entendem que o que eles são não define o que podemos ser. Somos, apesar deles. Independentemente do que fazem por si ou tentam infringir a nós. Os tolos, os sonsos, os perversos e os desimplicados, autores de uma narrativa autoritária que nos pretende coadjuvantes, não compreendem. As lentes que escolheram para seus olhos nublam o reconhecimento das amarras que creem nossas mas que, no fundo, são deles, os lamentáveis.

Certa vez, um sujeito que conseguiu remover essas lentes escreveu que “o medo da mulher frente à violência do homem é o espelho do medo do homem diante de uma mulher sem medo”. Concordei com ele.

Alguém poderia dizer, nos conhecendo de perto, que tememos muito. Mas sendo atento, conseguiria perceber que há no medo, este triste regalo adornado com laçarotes e lições, um antídoto para seu próprio efeito: se o medo não impede a dor, será combustível para essa revolução contínua e inevitável, inflamada por quem um dia tentou nos conter.

 

*Flora Daemon é docente do curso de Jornalismo da UFRRJ.

Postado em 23/10/2020 - 02:56 - Atualizado em 16/11/2020 - 12:30